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Referencial

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Entendemos lúdico com base no conceito de ludus do filósofo holandês Johan Huizinga, de  jogos como atividades livres e voluntárias com regras separadas da realidade cotidiana pelo que o autor define como círculo mágico. Frans Mäyrä (2008:16-19), citando Morrison, propõe o conceito de dinâmica como “forças ou movimentos que caracterizam um sistema”, para abordar aquilo que define um jogo, a mecânica (gameplay), que chamamos de dynamis: aquilo que premanece igual mesmo quando se modifica a superfície, um conjunto mínimo de regras que o/a jogador/a tem que conhecer antes de começar a jogar. Em palavras mais simples, é aquilo que o/a jogador/a faz, independentemente de interface, gráficos ou história.

Ludonarrativas também se apóiam nos poderes para narrativas, apontados por Roland Barthes (1977), de mathesis, vários saberes se entrelaçando, e mimesis, representação criativa que vai além da mera reprodução do real, assumindo um compromisso poético.

Segundo Janet Murray (2000), a narrativa é um de nossos mecanismos cognitivos primários para a compreensão do mundo. Muniz Sodré define narrativa como um “discurso capaz de evocar, através da sucessão temporal e encadeada de fatos, um mundo dado como real ou imaginário, situado num tempo e num espaço determinados. […] Como uma imagem, a narrativa põe diante de nossos olhos, nos apresenta, um mundo” (SODRÉ, 1988:75). Assim, a narrativa atua como o encontro lúdico de diversos saberes na medida em que este lúdico remete ao jogo do “faz-de-conta”, acionando fantasias pré-existentes que geram interesse, identificação e afeto (no sentido geral de resposta emocional, não necessariamente prazerosa), e transformando tais fantasias na Fantasia, segundo J.R.R. Tolkien (1966), a atividade humana de representar, por meio da arte, aquilo que não existe no “mundo primário”, cotidiano, criando “mundos secundários” tão narrativamente consistentes que se tornam críveis.

Entretanto, diferentemente de narrativas ditas divertidas, participativas ou interativas, as ludonarrativas agregam ao poderes narrativos a já mencionada dynamis, a dinâmica lúdica da história dada pelas decisões dos leitores sobre as ações das personagens em situações-chave do enredo a partir de um sistema de regras.

Nas ludonarrativas geralmente não há vencedores ou perdedores e ocasionalmente existe competição entre os jogadores. Participam desses jogos crianças, jovens e adultos, e essas ludonarrativas propiciam práticas de leitura, escrita, poética e pesquisa, práticas muitas vezes ligadas a processos educacionais e de empoderamento e inclusão, como socialização e inclusão de pessoas com deficiências, discussões sobre questões sociais e ambientais, temas amplamente investigados em mestrados e doutorados no Brasil e em outros países.

Roland Barthes (1977) destaca o potencial transformador dos poderes de mathesis e mimesis das narrativas. Se as narrativas per se já permitem o encontro lúdico de diversos saberes em sua fruição, facilitando a concretização de um trabalho multi, interdisciplinar ou transdisciplinar (NICOLESCU, 2001), aliados à dynamis, ampliamos ainda mais este potencial transformador, conforme nos diz a constatação de Tania Ramos Fortuna de que “[…] o jogo dá acesso ao simbólico no duplo sentido de introduzir o sujeito no mundo simbólico dos símbolos conscientes e compartilhados, equipando-o para que nele seja capaz de mover-se com desenvoltura, e de introduzir o próprio repertório de simbolismos do sujeito (simbolismos inconscientes, provenientes de seu mundo imaginário) no mundo real. Em uma realidade social que não é apenas moldura da experiência, mas uma das fontes de sentido e direção dessa experiência, o jogo habilita à recriação da realidade através de sistemas simbólicos. Uma vez recriada, é com essa realidade que o sujeito interage e é nela que ele se desenvolve, tornando-se quem ele é.” (FORTUNA, 2013:77).

Podemos então sugerir que jogar e/ou criar ludonarrativas mobiliza, a partir de fantasias pré-existentes dos participantes, a articulação de conhecimentos e competências (PERRENOUD, 1999) para a produção da Fantasia, no conceito tolkiniano, favorecendo a construção de novos conhecimentos e competências em um círculo virtuoso (NEVES, 2005). Este processo vem ao encontro de uma postura autônoma e crítica dos participantes, respeitando seus desejos e mobilizando-os para atitudes de transformação de suas realidades pessoal e social, visando criar as condições para a construção de conhecimentos e não sua simples transferência (FREIRE, 1996).

Muitas dessas ludonarrativas têm manuais de regras e/ou roteiros de histórias possíveis bem como um viés artístico marcado por uma estética própria destes jogos, que privilegia a vivência em detrimento do espetáculo.

Assim, este evento também se justifica pelo fato de, em anos recentes, termos presenciado o constante avanço das tecnologias de comunicação através de computadores e da internet, e com essas tecnologias surgem novas maneiras para os seres humanos interagirem com eles mesmos e com máquinas. Especialmente em ambientes virtuais, como a internet, percebemos a emergência de “perfis”, “personas virtuais”, “avatares” e assim por diante. Para entender esses fenômenos, e seu impacto na cultura humana, é necessário observar suas origens, pois como na biologia, é importante olhar para o ancestral de uma espécie para tentar compreender sua morfologia atual.

Nós podemos observar um desses “ancestrais” dos “avatares” de hoje em dia nos personagens dos RPGs de mesa, já que é nos Role-Playing Games que evidenciamos esses personagens como representações do jogador num mundo imaginário, com características definidas e desenvolvimento ao longo do tempo através da experiência. Na contemporaneidade essa ideia está presente em vários mundos eletrônicos virtuais, como vídeo games e redes sociais, mas é importante salientar que esse processo desencadeou-se lá atrás, através do RPG de mesa (TRESCA , 2011, p. 62; SCHICK , 1991, p. 18; BARTON , 2008, p. 19). Mas não se trata apenas do passado, já que vários várias atividades ludonarrativas, como o larp, tem têm ganhado cada vez mais popularidade, bem como tem se integrado com as mídias eletrônicas, produzindo experiências cada vez mais imersivas e impactantes na cultura humana. Assim, esse evento busca trazer novos olhares sobre um problema já antigo: o da relação entre pessoa e personagem  (VYGOTSKY , 1999).

Recentemente esse problema se tornou ainda mais complicado com a representação de improviso, como a presente em jogos ludonarrativos analógicos, teatro do improviso e afins. Ultimamente essas discussões tem têm encontrado espaço em alguns periódicos acadêmicos, monografias, dissertações e teses (MASON, 2004; HITCHENS & DRACHEN, 2009; SCHMIT, 2008), mas falta um lugar de encontro e de troca mais fluída de caráter acadêmico, de forma a não só promover encontros entre antigos e novos pesquisadores, como também fomentar novas pesquisas, novas perspectivas, novas reflexões, novas experimentações e produções epistemológicas .

A partir da inquietação de investigadores e de praticantes que também pesquisam no meio acadêmico, este projeto busca viabilizar a troca de experiências e saberes entre pesquisadores, grupos de pesquisa, associações, discentes e interessados da sociedade em geral sobre as possibilidades de pesquisa e suas metodologias, visto que já ocorreram alguns eventos acadêmicos no Brasil na década de noventa, entre eles, os quatro Simpósios RPG e Educação em São Paulo, dois colóquios RPG e Educação em Curitiba, o 1º Colóquio de Perspectivas Acadêmicas sobre Jogos de Tabuleiro e RPGs, também em Curitiba, e os dois Simpósios Histórias Abertas no Rio de Janeiro, aos quais este projeto pretende dar continuidade, fortalecendo a pesquisa acadêmica sobre ludonarrativas em diversos suportes, incluindo, aventura solo, role-playing game de mesa, Larp (jogo de ação ao vivo), jogos narrativos analógicos (cartas e tabuleiro) e jogos narrativos digitais (ARGs, MMO, CRPGs) no cenário nacional dialogando com a vanguarda internacional no campo.

 

Breve histórico de edições anteriores:

A primeira edição do evento Histórias Abertas foi o I Simpósio de RPG em Educação, ocorrido em 28 e 29 de novembro de 2003 na PUC-Rio. Este simpósio buscou por em destaque o interesse crescente dos educadores e pesquisadores do Brasil pelo Role-Playing Game (RPG), também chamado de “jogo de interpretação”. Deste modo, enfatizamos características de socialização, narrativa, interatividade e cooperação dos RPGs que tanto despertavam o interesse e a curiosidade destes profissionais.

O pioneirismo brasileiro nesta área vinha deslumbradondo profissionais americanos de RPG comercial, onde surgira a atividade, pois apesar de haver iniciativas similares de aplicação do RPG à educação nos EUA e na Europa, o Brasil fora o primeiro país a ter eventos criados especificamente para este fim e a buscar desenvolver um corpo sistemático de estudos sobre o tema.

Na área de pesquisa acadêmica a PUC-Rio já contava com duas dissertações de mestrado, uma em Educação e a outra em Design, e uma tese de doutorado, em Letras, que tiveram o RPG como objeto de estudo. Pesquisas sobre RPG vinham sendo feitas outras instituições acadêmicas, constando entre elas a UFJF, UNESP, UFSC e CENPEC.

Surgia no Brasil, portanto, uma demanda crescente por um evento de cunho acadêmico, que atuasse como fórum de debate e apresentação de artigos e pesquisas em curso sobre o RPG, contribuindo para o avanço científico nesta área.

A segunda edição do evento foi o II Simpósio RPG, Cultura e Narrativa, ocorrida em 12 de novembro de 2004 na PUC-Rio, onde se buscou enfatizar os níveis de interatividade possíveis em diferentes tipos de narrativa, entre elas, os jogos narrativos, e seus impactos na cultura e na educação. Neste evento, a título de comparação, foram aceitos trabalhos sobre narrativas diversas além de jogos.

Os pesquisadores organizadores deste evento, após contato com diversos grupos de pesquisa brasileiros e do exterior, participação em eventos internacionais de grande porte, como o DIGRA, publicação de artigos e livros, sentiram a necessidade de retomar o evento a fim de ampliar e consolidar as discussões atuais acerca das ludonarrativas e, se possível, organizar tais grupos em uma rede de pesquisa sobre ludonarrativas.

 

Referências

Laboratório Interdisciplinar de Linguagens