Data: 2 de setembro de 2021
Autora: Mayara Bastos
O que, como e por que imaginamos?
A imaginação é a habilidade que nos permite ter experiências sensoriais conscientes sem a presença de estímulos externos. Essas experiências podem ser voluntárias ou involuntárias e, em ambos os casos, você se baseia nas informações já armazenadas, de experiências sensoriais anteriores, para construir suas próprias imagens mentais.
Atenção: usamos o termo imagens mentais para nos referirmos a toda e qualquer modalidade sensorial e não só a visual! Então você pode ter a imagem mental de um cheiro, um som, uma sensação tátil, um movimento, etc.
Imaginação e Imagética
A imaginação depende, então, da Imagética: uma habilidade mais básica que permite a formação das imagens mentais. Em outras palavras, a imagética proporciona a representação interna de algo que não está presente no ambiente imediato. Já sabemos que essa habilidade está presente em várias outras espécies de mamíferos, especialmente em grandes símios. A imagética envolve todas as modalidades sensoriais mas, nos seres humanos, são mais estudadas a imagética motora, a imagética auditiva e, principalmente, a imagética visual.
Graças à imaginação, podemos combinar, de diferentes maneiras, imagens mentais e conceitos/ideias que temos armazenados, em um processo que faz parte da construção e atualização da nossa visão subjetiva do mundo. Assim, a imaginação se relaciona com diversas outras operações cognitivas e, principalmente, com a autoconsciência.
As bases neurobiológicas da imaginação
Imagética X Percepção
As pesquisas em imagética evidenciam que a formação de imagens mentais e a percepção, quando se referem a uma mesma modalidade sensorial, envolvem áreas cerebrais e redes neurais em comum. Isso quer dizer que, ao imaginar uma banana, estamos recrutando áreas que também são ativadas quando de fato estamos vendo uma banana, como o córtex visual primário e as vias ventral e dorsal. Da mesma forma, quando nos imaginamos realizando um movimento, também recrutamos áreas motoras como o córtex pré-motor. E isso pode influenciar no nosso aprendizado! Lembre-se disso da próxima vez que for tentar aprender um novo esporte, por exemplo.
Como consequência disso, observa-se que imagens mentais e imagens perceptivas (de uma mesma modalidade sensorial) podem e tendem a interferir umas nas outras. É por isso que é muito difícil você lembrar de uma música enquanto está escutando outra, ou imaginar o rosto de um amigo ao mesmo tempo em que lê essa frase.
Mas, apesar de serem processos similares que envolvem regiões cerebrais em comum, imaginação e percepção não são a mesma coisa. A imaginação é um processo top-down, ou seja, que parte de estruturas corticais superiores, como o córtex pré-frontal, para regiões mais inferiores, como as áreas de projeção sensorial (p.ex. córtex somestésico e córtex visual primário). Enquanto isso, a percepção é um processo bottom-up, que depende da estimulação dos receptores dos neurônios sensitivos e parte de estruturas mais inferiores para estruturas mais superiores. Nesse sentido, são processos que fazem, de certa forma, “caminhos inversos”. Além disso, as imagens mentais não são tão vívidas nem tão detalhadas quanto as nossas percepções e, por isso, em geral, elas não são confundidas com a realidade.
Rede de Modo Padrão (Default Network Mode /DMN)
As evidências indicam que uma das principais redes neurais envolvidas na imaginação voluntária é a DMN, que compreende as estruturas: córtex pré-frontal medial; córtex temporal lateral anterior; córtex parietal medial; córtex parietal inferior, incluindo a junção temporoparietal; e estruturas do lobo temporal medial como a formação hipocampal.
Essa rede é ativada, principalmente, em momentos de repouso ou de baixa demanda cognitiva, ou seja, quando as pessoas não estão focando a sua atenção em alguma tarefa específica ou estímulo externo. Isso acontece, por exemplo, quando estamos divagando, pensando no passado ou no futuro, simulando cenários hipotéticos ou pensando em outras pessoas, operações que dependem, de certa forma, da imaginação. Assim, a ativação da DMN parece estar presente na memória episódica e autobiográfica, na prospecção, no pensamento auto-referencial e no raciocínio moral. A DMN também se relaciona com cognição social, fazendo parte, por exemplo, da teoria da mente (a habilidade de compreender, inferir e predizer os pensamentos e comportamentos dos outros).
Qual a função da imaginação?
Faz sentido pensar que a nossa capacidade imaginativa, assim como outros aspectos da cognição, nos beneficiou evolutivamente. Isso porque ela nos permite sair das barreiras da realidade e viajar por cenários hipotéticos, refazer um trajeto geográfico, relembrar o passado, planejar o futuro, testar mentalmente novas ideias ou novos movimentos, construir o cenário de uma história que escutamos ou lemos, etc. E isso tudo influencia no nosso aprendizado e nos prepara para situações futuras.
Além disso, a imaginação muito nos ajuda nas atividades do dia a dia, na resolução de problemas e na criatividade, sendo útil para várias profissões. Na psicoterapia, por exemplo, a imaginação pode fazer parte de técnicas de relaxamento ou técnicas para controlar a dor, as fobias ou outros transtornos de ansiedade.
Todos têm imaginação?
Em geral, os humanos são seres imaginativos. Entretanto, de fato, as pessoas diferem no grau de facilidade e de vividez que têm na formação de imagens mentais. Nesse cenário, algumas curiosas experiências no processo imaginativo chamam a atenção.
A afantasia, ou, como é popularmente chamada, “cegueira mental”, é referida como a incapacidade de formar, voluntariamente, imagens mentais em alguma modalidade sensorial. Esse fenômeno foi descrito pela primeira vez por Francis Galton em 1880, contudo, somente nos últimos anos, vem sendo pesquisado pela neurociência. Pessoas com afantasia tendem a imaginar ou lembrar das coisas por meio de descrições linguísticas ou por meio da comparação e relação com outras coisas, a partir das categorias mentais que estão armazenadas. Do outro lado do espectro, a hiperfantasia consiste na formação de imagens mentais muito vívidas e muito detalhadas, que mais se aproximam muito de uma percepção. Ambas as experiências ainda são pouco conhecidas cientificamente e são vivenciadas por apenas uma pequena parte da população.
Além disso, é importante salientar que nem sempre a imaginação traz vantagens, mas também pode causar sofrimento e se relacionar com diversos transtornos psiquiátricos.
Ainda temos muito a descobrir!
A imaginação é um fenômeno complexo e muito difícil de ser investigado experimentalmente, pois se relaciona com várias outras habilidades cognitivas. Os assuntos discutidos aqui são apenas pequenas descobertas desse vasto universo que vem se mostrando cada vez mais importante para o nosso funcionamento cotidiano. Você consegue imaginar como seria a sua vida sem imaginação?
Referências
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Liga Acadêmica de Neurociências – LANC