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Professor Vicente Barros ilustrou sua apresentação com fotos no evento que marcou a abertura do Simpósio na Faced (foto: Alexandre Dornelas/UFJF)

“Aí está a vertigem: no como a alteridade da infância nos leva a uma região em que não comandam as medidas do nosso saber e do nosso poder”, anunciava o professor Jorge Larrosa (Universitat de Barcelona), um dos primeiros estudiosos da Educação, a definir a infância como um reino enigmático, onde seus habitantes enxergam o mundo sob outras medidas.

Com essa perspectiva, o II Simpósio de Neurodesenvolvimento Infantil abriu suas atividades, nesta sexta-feira , 1°, na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Buscando compreender e defender a infância, em seu próprio tempo e em suas questões, o evento discute a importância do brincar e do educar para a vivência de uma humanidade plena; tanto para os pequenos, quanto para os já expatriados do reino da infância.

Antecedida por uma apresentação do Coral da Funalfa — regido pela professora do Colégio de Aplicação João XXIII, Helen Barra de Moura –, a primeira mesa de debate do Simpósio contou com a presença dos professores Vicente Barros (PUC-RJ) e Gisela Pelizzoni (Escola Municipal José Calil Ahouagi), que compartilharam suas experiências como educadores e as descobertas encontradas em suas pesquisas.

Brinco, logo existo

Conduzindo a apresentação “Natureza: casa da criança”, Barros definiu o brincar como uma prática ancestral humana, repetida, de geração para geração, em todos os cantos do mundo. E a natureza, segundo ele, seria o primeiro ambiente dessa tradição. “Desde que a humanidade surgiu na terra, as crianças brincam na natureza. Mas que natureza é essa? É um espaço de acolhimento tão diverso que permite às crianças se expressarem, sem impor. Ao contrário, fornecendo ferramentas para essa expressão.”

Conforme o professor, os desafios apresentados por esse ambiente provocariam as crianças a realizar seus primeiros gestos de interação com o mundo. Ilustrando essa explicação com duas fotos — um menino compenetrado em alinhar tampinhas de garrafa na areia, e uma menina absorta em girar um tecido em torno de si mesma –, ele apresenta os gestos universais, que constituem a Cultura da Infância e permitem que as crianças, pela primeira vez, se percebam como humanos.

“Mais tarde, quando os meninos ficam mais velhos, passam a observar em um outro aspecto da natureza: o da matéria. O material para construir e criar, onde testam a resistência e a textura das coisas — a força necessária para cavar um buraco na areia, por exemplo — e desenvolvem a capacidade de transformar o mundo.” E, ao contrário do que um observador incauto possa pensar, essa experimentação não é aleatória. “As crianças percebem um diálogo com a matéria. Em uma viagem, vi um monte de meninos brincando com algumas pedras. Encontraram uma pedra redonda — que eles sabiam ser apenas uma pedra — e, ao enrolarem ela num pano, ela se tornou um bebê. Uma pedra toda pontuda, porém, não poderia ser um bebê.”

Barros abordou, também, a relação que comunidades tradicionais ou campesinas têm com o brincar. Em seu contato constante com a natureza, essa experimentação vivida pelas crianças representa uma parte essencial da vivência social, em que as mesmas brincadeiras se perpetuam de geração em geração. “Por todos esses motivos, a conservação desse espaço e da relação entre os ‘meninos’ e natureza é tão importante e deve ser preservada. Só com isso podemos oferecer às nossas crianças (e a nós mesmos) uma humanidade plena”, conclui.

A poética da infância

Dando continuidade à apresentação, a professora Gisela abriu a palestra “Modos de habitar o mundo dos pequenos” com um panorama histórico das definições de infância, começando em Platão — que considerava a infância um mal necessário e um estado de quase selvageria — e culminando em Larrosa. “Como disse Foucault, a loucura só é vista do alto da sentinela que a mantém cativa. Dessa mesma forma, não devemos ceder à tentação de enquadrar a infância.”

A professora ainda ilustrou sua exposição com uma das suas experiências vividas: “Uma vez, durante uma aula, um dos meninos da turma sumiu no colégio. Quando fui procurá-lo, encontrei outro menino — que não estudava ali –, sozinho. Quando perguntei qual o nome dele, ele me respondeu, muito desconfiado: ‘meu nome é quiança’. O Wilton (como descobrimos depois), hoje tem 10 anos e estuda com a gente. E esse episódio me faz lembrar que só uma criança pode definir o que é ser criança.”

Pensando na infância como um reinado, Gisela refletiu sobre os aspectos dessa vivência e como as crianças se manifestam no mundo dos adultos, usando como exemplos alguns episódios de sua experiência em sala de aula. “As crianças enxergam o mundo sob um outro prisma, e têm a capacidade de dar dignidade ao traste. Para elas, as miudezas e as insignificâncias são quase irresistíveis.”

Conforme Gisela, esses pequenos seres humanos também existem em outro tempo. “Enquanto nós vivemos sob a regência de Cronos — esse deus mal-humorado, destruidor, fragmentado e acelerado, que devora seus filhos –, as crianças vivem no domínio de Aión: o universo da repetição, do ‘de novo, de novo e de novo’.”

A professora explica que o tempo das crianças está suspenso na repetição e intensa imersão nas experiências. “Por isso os intervalos de 20 minutos não prestam. As crianças demoram a conseguir entrar nesse devaneio do brincar e são facilmente retiradas dele. A questão que pretendemos trabalhar com esse evento é enxergar formas de acolher esse milagre, que eles vêm prontos para realizar no mundo, e que nós só ficamos apequenando e encurtando”, conclui.