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Quadro de Eduardo Borges – Quem te viu, Quem te vê – integra exposição, que reúne 26 artistas visuais e dez escritores em tributo aos 80 anos da obra de Guernica

A imagem benjaminiana da História como uma “catástrofe única”, que acumula ruína sobre ruína aos nossos pés, traduz cada vez mais precisamente o passado e o presente da trajetória humana. Em cartaz, a partir desta quarta-feira, 11, no Espaço Reitoria da UFJF, a Mostra Embate ao Fascismo – 80 Anos de Guernica reflete sobre a tragédia que aflige continuamente diferentes povos ao redor do planeta, desde grandes episódios como o bombardeio nazista da cidade basca, durante a Guerra Civil Espanhola, em 1937, referida por Pablo Picasso na obra-prima tema da exposição, até as pequenas violências cotidianas. Realizada pela Pró-reitoria de Cultura, Embate ao Fascismo reúne 26 artistas visuais e dez escritores em tributo aos 80 anos de uma obra que, conforme define a pró-reitora Valéria Faria em texto de apresentação, se tornou um “perene ícone antifascista”.

A maioria dos trabalhos de artistas e escritores foi produzida especialmente para a exposição, que abriu a possibilidade de se fazer uma abordagem livre e contemporânea de Guernica, como forma de ressaltar a atualidade da obra de Picasso: o horror que a pintura expressa na dramaticidade de seus planos superpostos extrapola o episódio histórico que a inspirou para representar todo aniquilamento da dignidade humana. Em Guernica, a estética cubista mostrou-se a linguagem perfeita para, através de sua colagem, inventariar os destroços da História-Catástrofe, como a concebeu o pensador Walter Benjamin, e em cujo crescente monturo de escombros o século XXI veio despejar novas e terríveis ruínas.

A “força descomunal” do Guernica foi o motor do poema de Iacyr Anderson Freitas, Gernika [grafia basca], escrito na mesma noite em que recebeu o convite. “Minha ‘conversa’ com a obra de Picasso não poderia abdicar dos muitos níveis de tensão evocados pela composição plural – “a língua com seu fardo / de corpos empilhados”; a vingança que varre o ventre (para que o fantasma de novas vinganças o assombre); o mundo plasmado em preto, branco e cinza, a colagem-miragem do caos etc”, explica o poeta, citando imagens de seu poema. “Para nossa desgraça, infelizmente Guernica permanece atual, contemporânea, ao passo que poderia ter ficado apenas como ‘um retrato na parede’ dos desacertos históricos, para utilizarmos uma metáfora de Drummond.” 

Para o artista visual Eduardo Borges – autor de Quem te Viu, Quem te Vê –, a pintura, para além de sua materialidade de tinta e suporte, é um espaço próprio e tem sua elaboração constante entre temporalidades, recepcionando pintores e obras de todas as épocas em nosso presente. Com Picasso, prossegue Borges, “apreendemos que o habitante de Guernica é a um só tempo um cidadão espanhol e uma construção simbólica muito valorosa, que ecoa a aplicação dos piores e melhores valores ocidentais, e por fim, afirma-nos o senso do justo e a vitória do bem.” Segundo ele, Guernica ressoa hoje “porque seus algozes voltaram, o mundo cíclico trouxe de volta os ultrarradicais, os líderes políticos caricatos, raivosos, com ares paranóicos”. Apesar disso, Guernica contrabalanceia pelo lado dos justos, defende o artista.

Fascismo revivido
Na opinião do escritor Anderson Pires da Silva, autor do poema Trilogia do Horror, a permanência de Guernica não se dá porque a obra seja uma lembrança da barbárie, a fim de que não se repita. Ao contrário, segundo ele, sua atualidade é porque ainda há massacres, assassinatos em massa (“no Brasil, a cada cem pessoas assassinadas, 71 são negras, diz o último estudo sobre a violência”, cita), e uma desilusão política cada vez mais atraída pelos discursos autoritários. “Guernica é atual porque o fascismo não morreu; achavam que o haviam enterrado, mas ao contrário daquela música de Bob Dylan, Masters of War, ninguém ficou ao lado da cova para impedi-lo de voltar do túmulo.”

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Em sua revisita a Guernica, Lúcio Rodrigues transpõe a tragédia espanhola para o universo indígena em sua obra #souguaranikaiowá

Em sua revisita a Guernica, o artista visual Lucio Rodrigues transpõe a tragédia espanhola para o universo indígena em sua obra #souguaranikaiowá. “Esse é um tema atual e muito esquecido no meio urbano”, afirma ele. Em compensado OSB e técnica mista, a tela de 2m x 1,20cm retrata o massacre de índios com referências claras a Guernica, tanto na composição cubista quanto em certas imagens e expressões. A paleta de cores, porém, carrega no vermelho, que contrasta apenas com o preto e o branco. Não é a primeira vez que a obra de Picasso é tema de um trabalho de Rodrigues. O artista já reproduziu a obra-prima numa mostra do Museu de Arte Murilo Mendes (Mamm) e em um abrigo de ônibus, como um dos participantes do projeto Pontos de Arte. “Picasso é um grande inspirador para mim. Era um obstinado, produzia muito”, destaca Rodrigues, que afirma compartilhar com o mestre a mesma compulsão criativa.

Já a obra do artista visual Ramón Brandão, Al Hillah – em óleo, tinta craquelê e lápis sobre algodão cru (1,30 x 1,50cm) – refere-se a outro bombardeio cruel, que vitimou habitantes de um vilarejo próximo a Bagdá, na Guerra do Iraque em 2003. De 33 mortos, 16 eram crianças. Assim como no caso de Picasso, uma foto de jornal inspirou o artista: “A imagem da menina e do bebê mortos foram impactantes para mim porque expunha a vulnerabilidade da população civil face às guerras”, explica Ramón Brandão, que em sua tela focaliza a tragédia do vilarejo remetendo-o diretamente ao desespero humano expresso em Guernica. “É fácil associar Guernica a acontecimentos de caráter fascista de todos os tempos. Guernica está em Sarajevo, em Cabul, na Faixa de Gaza, na Palestina, em Eldorado dos Carajás, no massacre do Carandiru e em qualquer lugar onde inocentes pagam pela sanha do poder, do terror, e na submissão dos povos em nome de ideologias e religiões. Como Picasso, somos testemunhas desse teatro macabro, perverso e cotidiano. Nossa armas? A arte; tão pouco, e também tão intensa.” 

Na pele
O poeta e professor de literatura Charles Dias tem uma relação visceral com Guernica: “Há dois anos iniciei o processo de registro da obra, ainda mais fragmentada, em meu corpo. A tatuagem serviria para que eu marcasse em minha pele um pouco daquilo que o grande artista retratou ao ver tanto sangue derramado. Estou pessimista. Ainda não terminei a releitura da obra em meu braço, mas ela está aqui, como registro doloroso de uma grande mancha histórica.” O pessimismo do escritor está expresso em seu poema, Aviso: “A guerra, esse trabalho produtivo / e enérgico do impudor, / ainda nos ronda / com olhares de rapina.[…] / São velhas, as ideias / e é o mesmo, o controle. […]”. Charles afirma que, na condição de professor, se vê na obrigação de avisar que a barbárie não acabou. “Dialogar com Picasso, para mim, é tentar alertar para o perigo fascista que nos ronda, com as sabidas unhas de ferro da desinformação, do preconceito, dos bombardeios midiáticos”, diz ele.

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Obra Devolva-nos a América, de Clara Downey, estudante de Artes Visuais da UFJF, dialoga com a obra de Picasso não só pelo tema como pela apropriação de sua técnica

Com a obra Devolva-nos a América, a jovem Clara Downey, estudante de Artes Visuais na UFJF, dialoga com a obra de Picasso não só pelo tema – que ela transporta para a América do Sul – como também por se apropriar de sua técnica. Ao retratar as ditaduras militares no Brasil, Paraguai, Argentina, Peru, Bolívia, Uruguai, Equador, Chile e Colômbia, Clara faz uma colagem de registros fotográficos dos totalitarismos nesses países, rompendo com temporalidades e espaços a fim de mostrar como essas ditaduras se assemelhavam em sua violência contra o povo. “Além dessas similaridades, acrescentei uma colagem de terra por cima das fotografias, fazendo um desenho inspirado nas artes indígenas e pré-colombianas. Com essa sobreposição, notamos os horrores que essas terras já sofreram desde sua colonização”, explica.

Idealizadora da exposição, a artista visual e pró-reitora de Cultura, Valéria Faria, aborda em Tributo a Errailson, Magaiwer, Kevin Klive e outros 57 ninguéns o massacre de 60 internos do Sistema Penitenciário de Manaus, episódio que chocou o Brasil em janeiro deste ano pela brutalidade da chacina, que envolveu degolas e esquartejamentos: horrores de uma outra guerra que assola o país, produtora de barbáries diárias nas prisões e nas ruas. “Além de ser um marco da arte no século XX e notável representação do Cubismo, Guernica é uma obra essencial que representa nossa perplexidade e indignação diante dos horrores que nos assombram”, afirma a pró-reitora.

Ferramenta
Em sua releitura de Guernica, a fotógrafa Nina Mello se propõe a refletir sobre as violências subliminares. “Vivemos um momento terrível não só no viés da política, mas também no âmbito social, econômico, humano e ecológico. A arte continua sendo uma arma/ferramenta que possibilita as nossas expressões”, afirma. Segundo ela, a ocasião é oportuna para um questionamento sobre os diversos tipos de violência – das mais explícitas e de grandes dimensões às pequenas e insidiosas brutalidades cotidianas, “nas intolerâncias, na devastação de nossas florestas, nas posições reacionárias e fascistas dos políticos, nas ruas, nas casas…” Grito em Silêncio apresenta uma cena que a assombrava diariamente, “como uma invasão, uma destruição” no caminho de casa: o guindaste de uma obra em meio a uma área verde. “Um invasor adentra a mata e escorraça o homem da floresta, isto bem pode servir como metáfora pra tantas outras situações, mas aqui é real e, busco na repetição [da imagem] um diálogo com esta realidade”, diz Nina, referindo-se à repetição em Andy Warhol, que “tanto pode nos engessar quanto nos colocar em movimento”.

Embate ao Fascismo – 80 Anos de Guernica oferece uma pluralidade de visões poéticas – plásticas e literárias – da obra-prima de Pablo Picasso, que reafirmam sua “incômoda e irrefutável atualidade”, como define Iacyr Anderson Freitas: “Guernica deve ser vista como um espelho, um espelho de nós mesmos neste tempo e lugar, infelizmente.” A imagem que esse nos devolve é aterradora e pessimista. “O futurologista mais incauto ou imprevidente não apostaria um centavo sequer em qualquer uma das previsões em circulação hoje no mundo…”, especula Iacyr. Em tempos de reações extremadas contra exposições e obras de arte, a colagem dessas releituras de Guernica que Embate ao Fascismo traz a público ressalta a verdadeira capacidade da criação artística de emocionar, provocar e denunciar.

 Embate ao Fascismo – 80 Anos de Guernica – Exposição
Abertura dia 11, às 20h. Até 17 de novembro de 2017, de segunda a sexta-feira, das 8h às 20h, e sábados, das 9h às 12h, no Espaço Reitoria (Campus da UFJF).

Entrada franca

Artistas visuais: André Lopes, Babilônia, Carmina Usher, Clara Downey, Eduardo Borges, Francisco Brandão, Gabi Lemos, Giuliano Pietro, Guilherme Melich, Guilherme Portes, Heloisa Curzio, Knorr, Lúcio Rodrigues, Luiz Guilherme, Mário Tarcitano, Nickolas Garcia, Nina Mello, Paulo Alvarez, Petrillo, Priscilla de Paula, Ramón Brandão, Renato Abud, Ricardo Coimbra, Ricardo Cristofaro, Thiago Berzoini e Valéria Faria.

Poetas: Alexandre Faria, Anderson Pires, André Capilé, Anelise Freitas, Charles Dias, Darlan Lula, Edimilson de Almeida Pereira, Iacyr Anderson Freitas, Oswaldo Martins e Prisca Agustoni.

Mais informações:
Pró-reitoria de Cultura – (32) 2102-3964