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Jornalistas refletem sobre quadrinhos brasileiros, mercado editorial e as relações com o público

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Por Monique Campos

 

A mesa de discussões que encerrou a programação do HQWeek na noite de sexta-feira, 29 de maio, trouxe um panorama e algumas perspectivas para os quadrinhos brasileiros. Os convidados que apresentaram suas visões sobre produções e mercado nacional foram o jornalista e cartunista Ricardo Coimbra, e também os jornalistas e colunistas Júlio Black e Ramon Vitral. A mediação ficou a cargo do organizador do evento e pesquisador do Laboratório de Mídia Digital da Faculdade de Comunicação da UFJF, Stanley Teixeira.

 

Ramon Vitral, que deu início à conversa, considera que falar em HQs brasileiras é como falar de música brasileira. É um conceito abrangente, que engloba várias escolas, cenas, estilos; pessoas que fazem, pensam e propõem coisas novas. Portanto, ele entende não ser possível pensar em um estilo de quadrinho nacional, já que o cenário é amplo e “a unidade talvez seja essa diversidade”. O jornalista ressalta que lhe interessa conhecer o trabalho das pessoas que refletem o próprio fazer de histórias em quadrinhos e experimentam com a linguagem.

 

Ao contar sobre suas experiências e influências, Ricardo Coimbra diz que “faz parte de uma linha evolutiva ou ‘involutiva’ do quadrinho brasileiro”, começando no humor gráfico de Ângelo Agostini, com uma passada nos anos de 1920 e 1930 em trabalhos de Nássara e J. Carlos, também no jornal O Pasquim, em obras dos anos de 1980 com Angeli e Laerte, além de Allan Sieber, Arnaldo Branco e André Dahmer, que, segundo ele, formam a primeira geração bem sucedida em usar os meios digitais no cartum. “Sou da geração de transição”, ressalta Coimbra, destacando que começou a fazer quadrinhos de maneira analógica dentro do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da Universidade, produzindo fanzines de papel xerocado. O cartunista também possui influências do cinema e do audiovisual, destacando a série de humor do canal MTV do início do ano 2000, Hermes e Renato. Ele conta que começou a ter contato com a tecnologia digital como meio de divulgar sua produção e ressalta que está em processo de aprendizado, pois ainda não pensou nas potencialidades dos meios e plataformas.

 

Júlio Black conta que consome quadrinhos há mais de trinta anos, sendo que começou a leitura em revistas da Marvel e DC, “aquela nerdice” de acompanhar histórias de super-heróis, conforme destaca. Com o tempo foi conhecendo outras obras, inclusive quadrinhos europeus. Começou as leituras com Asterix e acompanhou um pouco da revista Heavy Metal nos anos de 1990. Assim como aconteceu para muitas pessoas, o contato com as obras europeias foi dificultado na época devido à distribuição escassa e o alto preço dos exemplares. “Hoje em dia o quadrinho europeu tem entrada boa no mercado brasileiro”, ressalta Black, considerando que atualmente editoras menores publicam obras européias, mas ainda existe o desafio de um preço acessível, pois não se pode apostar em grandes tiragens.

 

No que diz respeito ao quadrinho nacional, o jornalista, que trabalha na Tribuna de Minas, de Juiz de Fora, diz acreditar que hoje em dia a produção é maior e mais expressiva, possibilitada pelo alcance oferecido pela internet. O público tem se interessado pelos quadrinhos autorais, com temáticas que vão da história do Brasil a questões atuais, narrativas fantásticas, de horror, ou seja, uma ampla variedade de criadores vêm tentando estabelecer um público e também um universo, como o caso do Universo Guará. Black pergunta aos outros dois convidados como vêem o cenário das editoras interessadas em publicar quadrinhos atualmente, além dos jornais; se está mais fácil ou não para o artista independente conseguir publicar e ter o seu espaço.

 

Coimbra menciona que o seu trabalho começou a aparecer para um maior número de pessoas a partir do momento em que começou a divulgá-lo por meio da internet. Com isso, recebeu convites para publicá-lo, tanto em jornal quanto em editoras maiores. O jornal impresso é a mídia em que sempre sonhou em publicar e tem sido uma experiência importante, segundo ele, mas as editoras grandes, no entanto, não apresentaram propostas interessantes, em que pudesse ganhar um valor justo. O cartunista recorre às editoras menores para a publicação das coletâneas das suas tirinhas.

 

Teixeira reafirma a proposta do grupo de pesquisa Laboratório de Mídia Digital da UFJF de construir uma plataforma online, em que cada artista possa, de forma colaborativa, construir histórias em quadrinhos imersivas. A idéia é possibilitar a imersão com o uso de sistemas como o eye tracker, monitorando o movimento dos olhos durante a leitura e disparando efeitos sonoros e visuais. Ele ressalta que o processo colaborativo pode evitar a dificuldade que os artistas têm atualmente na distribuição e negociação com editoras e livrarias.

 

Ainda não se sabe como o cenário instituído pela pandemia que estamos vivenciando vai ditar formas de distribuir e consumir arte. Sobretudo para o mercado brasileiro de quadrinhos que se sustenta através dos eventos, segundo afirma Ramon Vitral. Ele menciona a Comic Con, que é o principal evento de cultura pop e movimenta o cenário dos quadrinhos no país. A nova realidade vai afetar tanto o quadrinista independente, autoral, como o mercado de quadrinhos de escala industrial – como as editoras que publicam histórias de super-heróis da Marvel e DC e também edições estrangeiras de luxo. Na visão do colunista, esse cenário levará a uma intensificação do processo de reinvenção das formas de venda e distribuição de quadrinhos para além das renomadas editoras.

 

Mesmo o ambiente da internet e das redes sociais também oferece dilemas para os quadrinistras conseguirem público, sobretudo de “estourar a bolha do nicho” no qual estão trabalhando. Vitral defende que o quadrinista independente que faz um zine, com tiragem de 200 exemplares, não consegue fazer frente a grandes editoras e distribuidoras que vendem com amplos descontos e investem nas publicações cada vez mais luxuosas. Os dois universos – independente e industrial – não se misturam. A partir do questionamento de Stanley Teixeira sobre como viabilizar a pesquisa e investir em quadrinhos nacionais, Vitral enfatiza que é necessário buscar fontes governamentais de financiamento de todas as formas possíveis, porque a arte, mais do que nunca, é necessária nos tempos em que estamos vivendo – de se contrapor a posicionamentos retrógrados e registrar o momento. Em relação ao artista, Vitral considera que a reflexão sobre formas de distribuição e venda é uma tarefa que se faz necessária nos tempos atuais.

 

Os diferentes universos dentro da arte dos quadrinhos

 

Coimbra menciona que ser cartunista e ser artista são coisas diferentes. Ele não se coloca na posição de artista e sim na de um “observador reativo” ou um “comentarista descompromissado das coisas”. “O interessante do cartum é que ninguém respeita o cartunista, logo o cartunista fala o que quiser. Há nisso uma certa liberdade”, segundo ele. Coimbra diz que entra no mercado editorial para publicar coletâneas de tirinhas de tempos em tempos, uma relação diferente da que se dá pelas narrativas mais longas, sejam autorais ou voltadas para o modelo industrial. Ele menciona uma frase de André Dahmer: “o mundo bom para o cartunista trabalhar não é um mundo bom para se viver”. Com isso, ele destaca que o cenário – sobretudo político – bom para se fazer piada é o que move as produções de cartuns.

 

Coimbra faz ainda uma crítica de que no país os quadrinhos são considerados interessantes por seu aspecto didático ou de adaptação de obras, nunca são interessantes pela linguagem em si. “Tem coisas que são feitas para serem contadas só em quadrinhos”, defende. Complementando a fala de Vitral, Coimbra ressalta que no campo das produções industriais, de super-heróis, os quadrinhos se tornaram um campo de “test drive” para produções cinematográficas. Júlio Black concorda, exemplificando com as produções do quadrinista escocês Mark Millar, pensadas para venda dos direitos autorais ao cinema, e também o caso brasileiro de O Doutrinador.

 

As grandes coleções de capa dura, sobre as quais Vitral mencionou, possivelmente afugentam o leitor devido aos preços altos, conforme destaca Black. O leitor acaba comprando apenas o quadrinho de super-herói e abre mão de uma produção nacional. O público consumidor de quadrinhos muitas vezes prefere comprar a coletânea em que encontra toda a saga do super-herói, por sair mais em conta, do que uma revista que traz uma história seriada, o que demonstra as dificuldades do cenário do consumo para quem está na outra ponta, a autoral. “Estava pensando na questão de como o quadrinista nacional, desenhista, roteirista, ilustrador, pode trabalhar isso tudo, principalmente sendo um artista independente”, reflete. O jornalista considera que pode ser uma estratégia para o momento atual publicar primeiro no digital para depois arriscar em versões para impressos, em que se possa equacionar todas as variáveis relativas ao mercado editorial. Uma forma de “fazer o nome primeiro e ganhar dinheiro depois”, resume o jornalista.

 

Vitral faz uma crítica em relação a esse choque de realidades existente entre as publicações autorais e independentes e o mundo das publicações industriais, em larga escala. “Uma reflexão necessária agora é como feiras, grandes eventos e produtores de conteúdo de quadrinhos estão fomentando um contexto, um ambiente de consumismo, ostentação e colecionismo. Não se trata de quadrinho. São pessoas que podem viver de vender quadrinho, mas não sei o quanto elas estão interessadas em cultivar um público de quadrinho”, destaca. O jornalista e colunista considera que esse cenário está cada vez menos voltado ao artista, aquele que está refletindo em como usar a linguagem. Ele diz ser mais favorável ao quadrinho barato, de banca, de jornal, que será muito lido e não ficará na prateleira simplesmente como um bonequinho. “É assim que se fomenta público. Não é vendendo em função da capa dura, da impressão”, argumenta. Júlio Black, em contrapartida, diz que, enquanto consumidor, prefere comprar as coletâneas do que as revistas seriadas no caso específico dos super-heróis.

 

Coexistência entre o autoral e o comercial

 

Ricardo Coimbra afirma que no Brasil há uma idéia de que o quadrinho bem sucedido é o de super-herói, comercial, e que não é possível fazer uma obra que seja ao mesmo tempo divertida, tenha experimentação de linguagem e traga algum tipo de liberdade autoral. Em algumas experiências norte-americanas, essa dicotomia entre o que é comercial e o que está longe da imposição industrial se articula de maneira diferente do que acontece no nosso país, conforme destaca o cartunista. Ele lembra do que se deu no cinema hollywoodiano dos anos de 1970 – o que foi descrito no livro Como a Geração Sexo-drogas-e-rock’n’roll salvou Hollywood. Um exemplo de como produtores e artistas enfrentaram a conveniência mercadológica daquele momento para bancar projetos artísticos autorais ousados. Uma geração de filmes que têm grande carga autoral e foram grandes sucessos industriais. “Dá para se fazer um paralelo com a indústria do quadrinho. Pra destruir a indústria do quadrinho precisa destruir o super-herói? Óbvio que não. É possível que haja a coexistência. Mas o mercado, como sabemos, tende a ser predatório”, lamenta. “Não adianta falar de um mercado em que você experimenta linguagem, onde você conhece novos autores, quando os editores do país estão interessados em comprar quadrinho americano pra vender aqui e continuar perpetuando o mesmo público lendo Homem Aranha quinze vezes seguidas”, critica.

 

O cartunista cita também o caso da AC Comics, voltada aos quadrinhos de terror, crime e suspense, que foi um exemplo de ousadia e humor mórbido. A revista fez grande sucesso nos Estados Unidos nos anos de 1950, inclusive foi influência para autores como Frank Miller e Alan Moore. Porém, grandes editoras, como a DC Comics, se juntaram com grupos de senadores norte-americanos para promover uma espécie de censura aos quadrinhos. A história da AC Comics e das repercussões políticas e culturais é uma outra demonstração da problemática da dicotomia, vinculada ao pensamento de que para ser viável comercialmente os quadrinhos têm que ser uma obra infantilizada, sentido contrário à ideia de que é possível ter experimentação e sofisticação de linguagem sendo viável comercialmente. “O que também falta é rompermos alguns problemas que têm ligações com o medo e moralismo. Estamos falando muito de mercado, de questões concretas e materiais de mercado, mas precisamos pensar se estamos cultivando esse público e como estamos fazendo isso”, conclui Coimbra.

 

Na sequência, Vitral ressalta que as dificuldades da falta de público e da falta de atenção para os quadrinhos nacionais diz respeito também à falta de leitura por parte do povo brasileiro. “A condição social da falta de leitura é conveniente para todo um sistema que quer só reproduzir coisas descartáveis”. Para ele, é necessário fomentar a leitura como um todo, pois “quadrinhos bons nós temos e temos muitos”, porém há toda uma questão de conveniência de um mercado que quer manter um status quo.

 

Encerrando as falas, Black aponta que o público de quadrinhos ganharia muito se houvesse liberdade artística de trabalhar, sem se preocupar com marketing, bonequinhos ou versão para cinema. Seria importante, na sua visão, que o autor nacional tivesse a possibilidade de fazer um material com volume maior de páginas, contando uma historia fechada, ou que pudesse também produzir quadrinhos seriados, em que tivesse tempo de desenvolver uma história e não precisasse encerrá-la devido à dúvida se conseguiria ou não ter uma segunda edição. “Eu espero que, para o futuro, apesar da crise mais séria que vamos ter por causa da pandemia, que tenhamos um mercado de quadrinhos ainda melhor; espero que o projeto que vocês estão desenvolvendo na UFJF ajude o quadrinho nacional a ter um público maior, um mercado maior e que as pessoas possam consumir mais quadrinhos”, reforça o jornalista.

 

Sobre os convidados:

 

Ricardo Coimbra é de Recreio-MG e cursou Jornalismo na Faculdade de Comunicação da UFJF, quando começou a publicar seus primeiros quadrinhos, fanzines e a trabalhar em jornais de sindicatos. Desde 2009 divulga tirinhas de humor e quadrinhos em seu blog Vida e Obra de Mim Mesmo. Atualmente mora em São Paulo, onde ministra oficinas de quadrinhos e humor, além de publicar seus cartoons e tiras no jornal Folha de S. Paulo.

 

Júlio Black iniciou sua carreira no jornalismo impresso em 2010 no jornal Diário do Vale, em Volta Redonda-RJ, como repórter e depois como editor. Mudou-se para Juiz de Fora em 2014, onde passou a trabalhar como repórter de cultura no jornal Tribuna de Minas. Escreve a coluna “…E obrigado pelos peixes”, publicada todas as quartas-feiras, e também apresenta o quadro Primeira sessão, com os lançamentos do cinema todas as quintas-feiras na Rádio CBN Juiz de Fora. Ainda é um dos participantes do podcast Papo de Quadrinho.

 

Ramon Vitral é jornalista, editor do blog Vitralizado e colunista do site do Instituto Itaú Cultural. Trabalhou no Jornal O Estado de S. Paulo e depois morou em Londres, escrevendo para os jornais Estadão, Folha de S. Paulo, O Globo e para a Revista Galileu. De volta ao Brasil, atua como colaborador de publicações em grupos de comunicação como O Globo, TV Globo, Folha de S. Paulo, Revista Rolling Stone, Revista Mundo Estranho, Revista Monet, seLecT, nos portais Nexo, Opera Mundi e UOL. Em 2016 e 2017, recebeu o Prêmio Editora Globo de Jornalismo na categoria Educação e Cultura por matéria publicada na Revista Monet. No ar desde 2012, o Vitralizado é um dos principais espaços para quadrinhos da imprensa brasileira, tendo publicado entrevistas com alguns dos maiores nomes das HQs mundiais.