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HQweek promove tarde de reflexões sobre as interfaces dos quadrinhos com educação, representação espacial e adaptação biográfica

Por Monique Campos

 

Dando início às atividades do HQWeek na tarde da quinta-feira, 28 de maio, a educadora Renata Nalim Basilio apresentou “Mosquito Aedes aegypti: ensino por meio da criação de histórias em quadrinhos”. Os estudos e trabalho de campo que desenvolveu fizeram parte da sua pesquisa em mestrado, realizada pelo Instituto Noroeste Fluminense de Educação, ligado à Universidade Federal Fluminense. Renata coordenou, juntamente com o professor Marcelo Nocelle de Almeida, seu orientador no mestrado, a produção de uma série de tirinhas que trazem temas como a origem africana do mosquito da dengue e sua introdução no Brasil, ciclos de vida do mosquito e formas de prevenção à dengue. O trabalho foi desenvolvido no Colégio Estadual Deodato Linhares, no município de Miracema-RJ, com alunos no ensino médio.

 

A educadora conta que o município passou por períodos de epidemia de dengue em 2014, 2015 e 2016, por isso percebeu a necessidade de trabalhar o tema da prevenção à doença. A forma encontrada para possibilitar o engajamento dos alunos e a atenção para as formas de combate à doença foi o trabalho com as tirinhas. “Trabalhar com as histórias em quadrinhos foi um meio que encontramos para chamar atenção para a necessidade de cuidar disso, um problema real que o Brasil enfrenta e Miracema enfrentou. As histórias em quadrinhos foram um recurso didático riquíssimo, que dá para explorar de várias formas”, considera.

 

Renata explica que, durante o projeto, ela e os alunos descobriram as habilidades para os desenhos, roteiros e organização dos trabalhos. Foram promovidos estudos sobre os elementos das histórias em quadrinhos, uma alfabetização em HQs e no processo da criação de tirinhas. Os participantes também se reuniram com o cartunista Flávio de Almeida, que deu um apoio didático fundamental para o desenvolvimento do projeto. A professora conta também que os alunos assistiram a documentários sobre o mosquito da dengue, a origem, permanência no Brasil e questões relacionadas ao combate à doença, um material de apoio produzido pela Fiocruz.

 

Os estudantes aprenderam a dinâmica de desenvolvimento das histórias em quadrinhos e colocaram nas tirinhas as suas vivências, experiências, bem como fizeram associações de idéias e transformaram a produção da HQ em “um aprendizado muito mais produtivo”, conforme destaca Renata. A educadora também ressalta que, analisando as tirinhas, pode observar que os participantes exercitaram sua expressividade com a produção do material.

 

Representação espacial, representatividade e o universo Marvel em séries da Netflix

 

Dando sequência às apresentações de artigos, o doutorando do Departamento de Geografia da Universidade de Brasília, Octávio Amorelli, expôs a análise “Eu só estou tentando fazer da minha cidade um lugar melhor: Questões sociais, superpoderes e a cidade de Nova Iorque nas séries da Marvel na Netflix entre 2015 e 2017”. O pós-graduando trabalha com os conceitos de geografia, representação espacial e de lugar voltados tanto para os quadrinhos quanto para as produções audiovisuais sobre os super-heróis, abordando principalmente o alcance e representatividade proporcionados pelas séries.

 

Amorelli afirma que as narrativas da Marvel têm uma centralidade; no caso, orientam-se para a cidade de Nova Iorque. Analisando a perspectiva da Netflix para as narrativas da Marvel, as problemáticas do cotidiano – violência e medo urbanos, resistência, relações entre comunidade e indivíduos – ganham relevo se comparadas às questões globais características das narrativas nas HQs. As obras em audiovisual trabalham com o conceito de território, que é marcado pela ação e demonstração de poder, e também com o conceito de lugar, que vem carregado de afetos, emoções, questões ligadas à memória e imaginário. “É a partir disso, então, que essas obras começam a desenhar uma narrativa real de mudança na cidade, na percepção da cidade”, menciona o pesquisador.

 

Em um dos seus slides, Amorelli apresentou as localizações reais de alguns filmes e séries com ambiência em Nova Iorque e como as produções da Netflix trazem as lógicas dos problemas sociais, representação dos espaços e representatividade. Ele analisa o personagem Demolidor, advogado e deficiente visual, e sua luta contra a discriminação aos deficientes, além das questões que envolvem o personagem e processos de gentrificação – reestruturação de espaços urbanos. Também traz para a reflexão o personagem Luke Cage, cuja série demonstra a vivência de um homem negro se posicionando em relação a sua cidade, sua vizinhança, o combate ao racismo e a luta pela construção de um espaço melhor. Já no que diz respeito à personagem Jessica Jones, percebe-se o constante posicionamento da personagem em relação à comunidade em que vive, demonstrando os problemas cotidianos da misoginia e enfatizando as ligações entre elementos urbanos, machismo, relacionamentos abusivos e assédio. Punho de Ferro, no entanto, traz a perspectiva da classe média de Nova Iorque e a vivência do personagem nos espaços de Wall Street, nos centros comerciais e empresariais da cidade. 

 

Fazendo uma comparação com os conceitos da jornada do herói – baseada nos estudos do antropólogo Joseph Campbell –, Amorelli busca compreender os processos de apropriação e transformação da cidade por parte dos personagens analisados. Cores, sombras, jogos de luzes e organização de cenários apresentam os ambientes seguros, assustadores, remetem à esperança ou tristeza. As paisagens conferem o convite à aventura, em que cada cenário urbano atende às necessidades de cada uma das personalidades dos heróis. Já nos momentos de transcendência da realidade, em que os super-heróis começam a lidar com seus poderes, a cidade de Nova Iorque começa a ser representada como uma possibilidade de transformação. Por fim, na ressurreição desses heróis, a transformação que eles providenciam para aquele espaço fica evidenciada em cenas mais brilhantes, em uma narrativa que coloca em evidência a mudança nas relações de poder e a forte presença do conceito de lugar, que na área da geografia está ligado às emoções humanas, aos afetos.

 

Amorelli ressalta que sua pesquisa demonstra como a representatividade importa e como se pode criar transformações na audiência, quando essa passa a vivenciar esses espaços. “A imagem reproduzida a partir do audiovisual, do quadrinho, é condicionada por um autor e depois interpretada por um público. E isso vai criando um ciclo constante de retroalimentação, em que a ação das personagens, a territorialidade que elas criam, a maneira com que essas ações vão se construindo, acabam se voltando para o espaço, para a forma como consumimos o espaço de alguma forma. Sempre tivemos um consumo do espaço real muito orientado pela proposta que se propaga dentro do audiovisual”, aponta.

 

HQ sobre Frida Kahlo revela importância de se conhecer a história da pintora e o movimento artístico latino-americano

 

Em seguida, a mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação pela UFJF, Leiliane Germano, realizou a comunicação do artigo “Das telas aos quadrinhos: a transposição de Frida Kahlo para o universo das HQs”. A pesquisa que Leiliane apresentou no HQWeek se refere à história em quadrinhos “Frida Kahlo: Para que preciso de pés quando tenho asas para voar”, roteirizada por Jean-Luc Cornette e ilustrações de Flore Balthazar. A obra foi construída a partir da biografia original da artista, escrita por Hayden Herrera. As páginas da HQ conseguem sintetizar a história de Frida, como também apresentam uma visão sobre a mulher que é ícone feminista nas artes, no movimento surrealista latino-americano, na cultura mexicana e na atuação política, já que participou de importantes movimentos históricos do México na década de 1930.

 

A mestranda avalia que a HQ consegue dimensionar o quanto é importante conhecer a história de Frida e a apresenta como símbolo de resgate cultural. Nas ilustrações, Frida sempre se veste com trajes típicos da tribo tehuana e traz flores no cabelo, uma resistência ao processo de colonização. Além disso, a HQ evidencia Frida Kahlo enquanto símbolo de luta feminina pelo espaço profissional, apresentando seu engajamento pelo reconhecimento dos seus traços peculiares, por poder assinar suas obras e não estar “na aba” do marido e também pintor, Diego Rivera. Enquanto ele era muralista, ela se sobressaiu pela pintura dos autorretratos. Outro ponto identificado pela pesquisadora é que a história em quadrinhos deixa claro que Frida se incomodava por ser considerada surrealista, pois afirmava que suas pinturas traziam os momentos da vida que quis ilustrar, o que viveu e quis deixar marcado.

 

Diferente do livro biográfico que traz as obras prontas de Frida, a HQ faz questão de apresentar momentos da produção e ainda os que Frida viveu e desencadearam as temáticas em suas obras. “A HQ permite imaginarmos como foi criar aquele material”, conta Leiliane. Além disso, a mestranda destaca que os quadrinhos apresentam o quanto é necessário trazer artistas latino-americanos para o sistema de ensino. “A HQ se torna um objeto interessante para o ensino de arte, para o ensino da vanguarda surrealista para o público infanto-juvenil. Consegue transpor uma biografia vasta, enorme, para um trabalho expressivo, porém menor, mas didático”, comenta. A relevância para a sala de aula, segundo Leiliane, passa pela possibilidade de demonstrar que há artistas, sobretudo mulheres artistas, nos processos de vanguarda. “Precisamos resgatar isso e tornar nosso sistema de ensino menos eurocêntrico e mais latino-americano. A história da Frida Kahlo precisa ser conhecida além dos símbolos nas camisetas, dos posts de Instagram, mas principalmente como mulher, que se colocou à frente do seu tempo, e pessoa que queria assinar seu nome no seu trabalho, sem depender de ninguém”, conclui.

 

A construção discursiva do personagem Superman

 

A última apresentação da tarde de quinta-feira, 28 de maio, ficou a cargo do pesquisador e mestre em Ciências da Linguagem, Marcelo Travassos da Silva. A exposição do artigo “Análise crítica de Superman: entre quadrinhos, discurso e mudança social” teve como base sua dissertação de mestrado, pela Universidade Católica de Pernambuco. Silva faz uma reflexão sobre o Superman, primeiro super-herói das revistas em quadrinhos, e em quanto esse personagem da ficção se relaciona com a realidade. O pesquisador parte do modelo tridimensional do discurso, teoria proposta pelo linguista Norman Fairclough, para analisar primeiramente textos da HQ, também a construção discursiva do personagem e, por fim, o que é nomeado como prática social, que, segundo Marcelo, pode-se entender como a ideologia.

 

Desenvolver uma análise da construção discursiva do personagem requer conhecer o contexto histórico que foi determinante para a criação do Superman, conforme explica Silva. Ele diz que a quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque em 1929, gerando uma grande crise e com isso uma série de problemas sociais para os americanos é parte importante dessa construção. O país assume o discurso do Superman e incorpora no personagem a figura do salvador e símbolo de esperança, mesmo não tendo sido criado com esse intuito.

 

Silva ressalta que o pai de Jerry Siegel, um dos criadores do super-herói, foi assinado durante um assalto à loja em que trabalhava, o que explica a fantasia do adolescente, na época, de que o homem não deveria morrer com um tiro de revólver. Junto a isso, Siegel e Joe Shuster, seu colega de escola e também criador do Superman, eram judeus – filhos de imigrantes, inclusive – e adicionaram ao enredo do super-herói a narrativa de Moisés – a ideia de que Superman foi colocado numa nave e mandado para o planeta Terra tem relação direta com a história do Messias. Outra relação importante da narrativa do Superman é a idéia do Ubermensch, conceito do filósofo Friedrich Nietzsche para o ser que está além do homem, que alcançou a perfeição. Para Nietzsche, a origem do homem está no macaco e o final está no Ubermensch. Os criadores do Superman também trazem a referência dos artistas de circo, em especial de um que eles admiravam, conhecido como o “homem de aço polonês”. Todas essas influencias culminaram no personagem lançado na revista em quadrinhos Action Comics, em 1938.

 

Em sua análise sobre a origem do Superman por meio de quadros específicos da publicação de 1938, Silva considera que “o roteiro da primeira história do personagem, que tem mais de 80 anos, continua muito atual”. Os aspectos ideológicos, que estão relacionados ao papel do Superman para a sociedade americana, remontam a toda a caracterização do personagem e a realidade histórica, bem como aos desejos de superação das dificuldades que as pessoas enfrentavam.